Toque de proteger é uma necessidade?
Somos um país que gosta de legislar e é bom nisso. Temos leis de primeiro mundo para a preservação ambiental, coisa elogiada e copiada por aí afora. Temos o Estatuto da Criança e do Adolescente que é um primor humanista, além de ser uma lei democrática e um avanço que vai para além do Código de Menores que continha medidas reducionistas, dando lugar a arbitrariedades que feriam a dignidade e a liberdade de crianças e adolescentes.
O ECA contempla todos os aspectos da proteção à infância e à adolescência, mesmo que contestada por muitos na intenção de fazer modificações como a redução da idade penal, coisa debatida e sonhada por quem se assusta com a criminalidade juvenil. Há vinte anos já, estudamos, debatemos, sonhamos, instituímos órgãos de proteção, adaptamos como dá, aceitamos o que os gestores oferecem, mesmo que sejam arremedos do que seria necessário e constatamos que, em vinte anos, o ECA, essa lei perfeita e democrática, ainda não foi efetivada, pois a criança está longe de ser prioridade absoluta.
Esse gosto por legislar e por contemplar o clamor do povo, criou um Projeto de Lei Municipal, que já foi aprovado pela Câmara de Vereadores, faltando ainda ser sancionado pelo Sr. Prefeito, que institui o que foi chamado de “toque de proteger”, como se trocar “proteger” por “recolher”, escondesse os verdadeiros objetivos da lei. Estamos, portanto, aguardando a decisão do Executivo, que esperamos seja o veto ao texto completo do projeto.
O clamor do povo nós já conhecemos, pois acontece quando algo muito grave ganha a mídia, que gosta de noticia exaustivamente explorada e faz com que, revoltados e extremamente sensibilidados, demos apoio a medidas nem sempre humanas e humanizadoras. . Aí acontece a grita geral. Facilmente a solução é apoiar medidas para ver meninos e meninas trancafiados com 16 anos, falamos em impunidade da juventude, esquecemos as sanções previstas no ECA, mais severas do que as aplicadas a adultos, pois são imediatas e prevêem a reeducação e a reinserção social.
O Toque de Proteger quer ser uma tentativa de proteção, porém é perigosa por vários motivos: não há equipe capacitada para abordagem de crianças e adolescentes; não há um lugar adequado para colocar esses meninos e meninas enquanto se busca a família; em caso de surto por ingestão de drogas, não há onde tratá-los pelo período necessário para sua eventual cura; não temos garantia de que a lei não seja usada como tentativa de fazer-se uma “limpeza social”. Todos nós sabemos quem seria retirado das ruas, para quem não sabe, ou para quem faz de conta que não sabe, serão crianças e adolescentes pobres, aqueles que não podem dizer: “sabes com quem estás falando?”; não se está prevendo intervir em festas particulares de formatura de primeiro e segundo graus, por exemplo, onde a bebida corre solta; não está previsto intervir em festinhas de crianças e adolescentes, quando sabemos que os próprios pais servem e oferecem bebidas a seus filhos e convidados, quando não fazem vista grossa à vodka escondida dentro de inocentes refrigerantes. Proteger, definitivamente, não é sinônimo de recolher.
O que necessitamos é que as leis sejam cumpridas com rigorosa e eficiente fiscalização; o que necessitamos é uma sociedade imbuída da responsabilidade de cuidar de todas as crianças e adolescentes e não só dos próprios filhos; o que necessitamos é de um legislativo que também fiscalize o cumprimento das leis que já existem, pois esta é uma atribuição importante, inerente ao seu mandato.
Não queremos leis novas, queremos crianças e adolescentes felizes e livres, devidamente protegidos pela família, pelo Estado e pela sociedade. É isso o que reza o ECA e é isso que não estamos fazendo, mas temos esperança de que seja feito.
Publicado no Diário da Manhã de 9/07/2010
4 comentários:
Que bom que gostou dos meus escritos Sueli. Acompanho o seu blog sempre que posso.
Fostes a UPF TV gravar um programa sobre o toque de recolher, não é mesmo?
Trabalho lá, estava saindo para uma reportagem, por isso, não fui me apresentar.
Admiro o teu trabalho, mãe do Bruno, sogra da Rocheli, hehe. Conheço os dois, a Cheli foi minha colega de faculdade.
Grande abraço
Grande abraço pra você também e obrigada pelo comentário...
* correção: toque de proteger
Proteger é um eufemismo cruel, que disfarça as verdadeiras intenções da lei. Gostei da expressão que você usou, Fani!
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