sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Ressaca

“São casas simples, com cadeiras na calçada e na fachada escrito em cima, que é um lar...” Gente humilde – Garoto, Chico e Vinícius

Da época da música citada aos nossos dias encontramos diferenças abissais, começando pelo fato de que vivíamos com vagar, com tempo de conversar com os vizinhos, quando uma viagem daqui a Carazinho levava quase um dia. Hoje, percebe-se uma pressa louca, mesmo com estradas asfaltadas que nos levam daqui para ali em questões de minutos.

Estamos vivendo a ressaca da natureza implacável, coisa provocada por nós, segundo os cientistas, ou segundo outros, vivemos um ciclo natural de mudanças, mas, de qualquer forma, o fato é que estamos enterrando nossos mortos e lamentando a perda de bens materiais, tendo que reconstruir cidades inteiras.

A ressaca da nossa pressa em chegar é mais chocante, pois enterramos centenas de pessoas, vitimas das estradas ocupadas afoitamente, no afã de chegar logo e viver os feriadões tão aguardados. Os ocupantes dos veículos envolvidos em acidentes sabiam que estavam sendo aguardados com ansiedade, sabiam de suas mães e pais preparando ceias e docinhos e quitutes que eles sabiam, eram seus preferidos.

Há ressacas sem cura, há ressacas que amargaremos para sempre, porém as estradas estão cada vez melhores, os espumantes estão sendo fabricados em quantidade suficiente, as cervejas são cada vez mais variadas e não temos mais que perder tempo sentados nas calçadas, proseando com os vizinhos, afinal temos nossos amigos virtuais, os quais podemos acessar de qualquer lugar do mundo.

O fato é que somos muito condescendentes com o perigo e não hesitamos em arranjar desculpas pessoais para nossos desmandos. Ouvimos nossos filhos, nossos amigos e ouvimos de nós mesmos desculpas para correr na estrada, já que ela está tão boa e não tem pardais; concordamos e toleramos que em festas é permitido beber e dirigir, já que alguns, segundo eles, não perdem os reflexos com a bebida, já que alguns são mais fortes pra bebida do que outros; concordamos com o fato de que a fiscalização está frouxa, então podemos abrir uma exceção; e, sorridentes e felizes abrimos mão do que deveria ser fundamental, abrimos mão da segurança dos nossos filhos, abrimos mão da firmeza nas nossas opiniões, abrimos mão do exemplo cidadão que deveríamos ser.

Quem sabe se, cansados disso tudo, este ano e nos próximos, tomemos decisões inteligentes para preservar o planeta, viajemos apreciando a natureza, dentro da velocidade permitida, sem ultrapassagens perigosas e, façanha das façanhas, voltemos a colocar cadeiras nas calçadas para conversar com os vizinhos e aprender uma nova forma de fazer chimarrão, numa troca que só pode ser enriquecedora. Quem sabe se essa prática não espanta assaltantes? Quem sabe se aquele menino enlouquecido pelo crack, filho do nosso vizinho, não vem bater um papo conosco?

Temos direito aos nossos brindes, à nossa alegria, mas temos a obrigação de chamar um taxi que nos leve para casa, caso nossos brindes contenham álcool, não lhe parece? Ressaca é um sintoma de algum excesso, mas não pode ser permanente. Um remedinho pra dor de cabeça, muita água e um café forte devem bastar, afinal, não estamos em guerra pra perder tantos filhos e filhas, não é?



Publicado em O Nacional de 11/01/2010

Publicado no Diário da Manhã em 14/01/2010

2 comentários:

Gabriel P. Knoll disse...

isto soou como um chute no saco de muitos.

Anônimo disse...

Mto bom meeeesmo tia! Adorei o artigo! beijooos
Xanda