
Tenho sérias reservas quanto a minha capacidade de falar sobre minha mãe, pois abomino toda a forma de pieguice e, em se tratando de mãe, cai-se facilmente nesta armadilha.
Hoje, longe o suficiente dos anos em que me dediquei em cuidar dela, posso falar sem o calor da paixão da época, motivo pelo qual, aventuro-me na empreitada de fazer uma análise dessa mulher que me gerou e que gerou minhas três irmãs e meu irmão.
Gostaria de simplificar bastante para conseguir definir com poucas palavras, o que ela representou para mim e para seu mundo: ela representou e ainda representa um gigantesco poder de superação. Ela fez escolhas que foram determinantes para que tivéssemos um exemplo do que seja ser rico. Nunca tivemos dinheiro, mas ela escolheu ser rica, o que parece ser um paradoxo. Mas eu explico: ela escolheu ser rica de bom gosto, de capricho para que tudo fosse lindo, embora modesto. Criamo-nos comendo a melhor comida, pois preparada com esmero, mesmo que fosse um ensopadinho de chuchú contido em uma bonita tigela fumegante e toda salpicada de tempero verde. Entende o que quero dizer? Tudo era lindo, rico e caprichado; criamo-nos vestindo as melhores roupas, engomadas e muito bem costuradas por ela, o que causava impacto em quem não conseguia entender o milagre; criamo-nos em belas casas, caprichosamente arrumadas, com camas cobertas por colchas brancas de piquê, onde não podíamos sentar durante o dia, para que permanecessem esticadas e limpas; criamo-nos nos sentindo as pessoas mais importantes do mundo, por que isso era incansavelmente dito por ela; criamo-nos os filhos mais amados do mundo, por que sentíamos isso da parte dela, mesmo que nunca dito com todas as letras; criamo-nos acreditando que ela escolhera o melhor homem do mundo para ser nosso pai, tal era a forma elogiosa com que nos contava da sua escolha.
Essa mulher que foi e é minha mãe, ficou comigo nos últimos anos da sua vida, de forma estreita e inexorável. Convivemos na fase em que ela se tornou doce, ao contrário das nossas expectativas, dado ao grande sofrimento a que foi submetida, devido à asma severa e interminável da qual foi vítima. Vou lançar mão de um lugar comum ao dizer que ela fez como o vinho, que, com o tempo, ou azeda ou apura. Ela apurou seu comportamento e viveu intensamente sua vida conosco. Respeitou profundamente nosso estilo de vida, assim como respeitou e amou o Domingos, seu genro, com quem teve uma convivência alegre até o fim. Amou sobretudo seus netos, com os quais teve uma convivência marcada pela cumplicidade, desculpando todas, mas todas as falhas que porventura cometessem.
Eu gostaria de mudar algumas coisas, caso me fosse concedido voltar no tempo: eu não iria brigar com ela para que se cuidasse tanto, já que adiantou tão pouco; eu não a obrigaria a ficar tantos dias de cama para curar uma úlcera, já que ela sempre voltou; eu não lhe daria tantos remédios, já que nunca consegui amenizar seu sofrimento; eu teria começado antes, muito antes, a impor a ela meus abraços e beijos, mesmo que constrangidos no começo, para que superássemos antes a educação alemã, avessa às exteriorizações de afeto, que tanto me fizeram falta, e, tenho certeza, a ela também.
Posso dizer que tive uma mãe de verdade, não uma mãe perfeita. Posso dizer que cuidei dela com desvelo e carinho, não com perfeição. Posso dizer que ela foi feliz conosco e disso tenho certeza absoluta, mesmo que com algumas falhas por parte de todos.
E eu tenho muita saudade dela. Não lembro de nada que tenha me feito sofrer tanto, como quando tive que abrir mão dela para sempre. Consolo-me ao pensar que ela está se agigantando dentro de mim, sem pieguice, mas com a consistência de saber que nossa relação aconteceu da forma como devia ter sido, sem que fugíssemos de nenhum conflito e de nenhuma responsabilidade.